quarta-feira, 28 de novembro de 2012

Do Deus-me-livre ao Deus-dará.


Do Deus-me-livre ao Deus-dará.

No negócio fechado entre a Kinross e o Estado de Minas, ambiente perde o valor humano e contribuinte paga a conta.

Por Sergio Ulhoa Dani, de Heidelberg, Alemanha, em 28 de novembro de 2012.

Foram em vão os protestos, reuniões e audiências públicas. A mineradora canadense Kinross Gold Corporation fechou negócio com o Estado de Minas Gerais para criar um Parque Estadual no município de Paracatu, numa área de proteção especial (APE) que já estava protegida por um decreto estadual (1) e em bom estado de conservação ambiental, após décadas de gestão independente de várias famílias de proprietários rurais.

A escolha e aquisição das áreas destinadas ao parque foram feitas pela mineradora, a título de ‘compensação’ pelo projeto geocida e genocida de expansão da sua mina de ouro situada logo ali ao lado da área escolhida para o parque.

“Preocupou-me a maneira com que este parque foi apresentado”, afirmou Valter Caramello, engenheiro agrônomo especialista em gestão ambiental e ex-chefe da divisão de desenvolvimento sustentável da própria Rio Paracatu Mineração/Kinross, em uma reunião realizada na Câmara Municipal de Paracatu, em novembro de 2010.

“Em primeiro lugar, uma cláusula do contrato entre a Kinross e o IEF (Instituto Estadual de Florestas de Minas Gerais) dita que a Kinross escolherá o local a ser comprado – o que é um absurdo, já que a escolha deveria ser feita de forma imparcial pelo Estado em participação com a comunidade”, denunciou.

Segundo Caramello, quem vai pagar a conta da manutenção é o contribuinte. Pelo acordo, a mineradora só vai vigiar a área por quatro anos.

“Não temos motivo para acreditar que o parque em Paracatu será bem administrado. Este acordo entre Kinross e IEF é unilateral. Não é possível que esta compensação seja feita apenas com a compra da terra. Como o IEF, um instituto que era para nos defender, coloca uma cláusula desta? Quatro anos para administrar?”, protestou o médico e vereador Romualdo Ulhoa, durante a reunião.

Em abril de 2009, num encontro promovido pela FETAEMG-Federação dos Trabalhadores da Agricultura do Estado de Minas Gerais, os produtores rurais discordaram da maneira como o processo de criação de unidades de conservação estava sendo conduzido pelo IEF. Na época, o órgão trabalhava com a hipótese de criação de um parque estadual de 10 mil hectares na APE, e os produtores rurais defendiam a criação de um mosaico de unidades de conservação, preservação permanente e uso sustentável no Sistema Serra da Anta, com a participação dos produtores locais e da comunidade (leia trechos do relato do encontro, reproduzidos na nota 2).

A desapropriação pelo Estado das áreas escolhidas pela mineradora canadense para o Parque Estadual de Paracatu expulsa as famílias que tradicionalmente cuidavam destas áreas. "Esses são valores humanos que devem ser respeitados e reconhecidos como essenciais para a sobrevivência, a sustentabilidade e a segurança hídrica de Paracatu", indicou Eduardo Nascimento, assessor da FETAEMG, durante o encontro.

O “Deus-me-livre”, misterioso canion localizado dentro do perímetro das áreas desapropriadas para o parque corre o risco de ficar ao “Deus-dará.

Ironicamente, a criação do parque estadual pode ser um tiro no pé da própria mineradora. Pela Lei do Sistema Nacional de Unidades de Conservação, atividades potencialmente poluentes ou degradantes do meio ambiente não são permitidas dentro de uma zona de amortecimento de 10 km em torno de unidades de conservação ambiental de proteção integral, como os parques municipais, estaduais ou federais.

O empreendimento da Kinross, especialmente a nova barragem de rejeitos tóxicos do vale do Machadinho, construída na face leste do Sistema Serra da Anta à revelia do interesse público, à custa da expulsão de dezenas de famílias de agricultores e quilombolas do seu território constitucionalmente protegido, em flagrante desrespeito à Constituição Federal, está dentro desta “zona-tampão”.

Ao que tudo indica, a Kinross joga o jogo do geocídio consumado, num país lançado ao “Deus-dará”, onde o Estado é dominado pelo poder econômico e o povo não tem voz nem vez.

Referências e notas:

(1) O Parque Estadual de Paracatu, com uma área total de 6.539 hectares foi criado por força do DECRETO Nº 45.567, de 22 de março de 2011. O parque foi criado em uma área já protegida pelo decreto estadual 29.587, de 1989, que criara uma APE-Área de Proteção Especial de cerca de 25 mil hectares, sob domínio privado de centenas de famílias de produtores rurais, onde estão recursos hídricos que abastecem a cidade de Paracatu de água potável. Com a criação do parque, cerca de 25% da APE passaram para as mãos do Estado.

(2) Trechos do encontro de abril de 2009, conforme publicado em http://alertaparacatu.blogspot.de/2009/04/encontro-discute-criacao-de-unidades-de.html:

“Eduardo Nascimento, assessor da FETAEMG, lembrou que o Estado de Minas Gerais criou milhares de hectares de parques estaduais, mas não regularizou nem 20% dessas áreas, criando sérios problemas sócio-ambientais. Denunciou o engodo da utilização de recursos do FHIDRO para regularização fundiária. "Esses recursos são primariamente destinados a projetos de conservação de bacias hidrográficas, e somente podem ser usados para regularização fundiária quando há sobras, e a tendência é de não haver sobras", explicou Nascimento. Ele alertou para o risco de criação de unidades de conservação por decreto estadual: "Enquanto os decretos para reforma agrária podem ser contestados, os decretos para criação de unidades de conservação não podem ser contestados. Então o processo não é democrático. Precisamos de soluções mais civilizadas".

"Queremos honestidade, clareza e responsabilidade", alertou Sergio Ulhoa Dani, presidente da Fundação Acangaú e membro da APACAN-Associação dos Produtores de Água do Acangaú. "O Estado simplesmente não tem recursos para comprar 10 mil hectares e indenizar e reassentar as famílias dos produtores rurais desapropriados para a criação de um parque desse tamanho. O Estado também não tem capital humano para cuidar de um patrimônio desses, próximo a uma cidade de 90 mil habitantes. É muito mais fácil, econômico, eficaz e sustentável trabalhar com os produtores rurais, sem retirá-los de suas propriedades. A lei permite e estimula a criação de Reservas Particulares de Patrimônio Natural, além de várias outras modalidades de unidades de conservação de uso sustentável, como as Reservas Extrativistas, e modelos produtivos, como o modelo dos produtores de água, que cumprem a função social da propriedade".

Félix Melo, presidente da Associação de Produtores Rurais da Chapada, citou o exemplo do Parque Municipal de Paracatu, de 200 hectares, que encontra-se em situação de abandono, desde sua criação. "O que dizer de um parque estadual de 10 mil hectares? Eu posso falar da incapacidade de gestão do Estado, porque eu sou funcionário do Estado, e eu não confio na gestão do Estado", concluiu.

O Sistema Serra da Anta é a área-alvo da criação de unidades de conservação
em Paracatu, por tratar-se de um aquífero montanhoso de importância vital para o abastecimento de água da cidade de Paracatu. O modelo de produtores de água foi implantado em parte desse território, pela iniciativa privada de alguns proprietários rurais organizados numa associação de produtores de água, a APACAN. Estima-se que as mais de 100 barraginhas ou bolsões de captação de água, curvas-de-nível e estradas ecológicas construídas pelos sócios da APACAN já produzem 40 milhões de metros cúbicos de água por ano.

A família de Isabel Neiva vive na Fazenda Biboca há mais de trezentos anos, conservando com amor e dedicação importantes nascentes de água e matas ciliares na face oeste da Serra da Anta. A família Ulhoa está ali há cinco gerações e constituiu a RPPN do Acangaú, uma reserva de mais de 3 mil hectares de cerrados e matas preservadas. No outro lado da serra, Ranulfo Neiva fez brotar água da pedra com suas barraginhas. "Esses são valores humanos que devem ser respeitados e reconhecidos como essenciais para a sobrevivência, a sustentabilidade e a segurança hídrica de Paracatu", indicou Eduardo Nascimento.

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